Ela abre os olhos. Não
fosse o cheiro horrível de morte, o silêncio seria até agradável; mas o olfato
a lembra que não há paz – nem pessoas, vizinhos, crianças. A trégua na
manhãzinha não traz esperança. Tão somente lhe permite descansar o corpo, mas
não a mente. As lembranças da noite anterior ainda produzem sobressaltos.
Bombas, casas caindo e soldados gritando.
Levanta-se,
bebe o pouco da água que restou do copo ao lado da cama. Já não é tão limpa nem
farta como antes. Sempre um gosto amargo misturado com H2O.
Abre a
geladeira, e só encontra comida enlatada e congelada. E mesmo não tão congelada
assim, já que os cortes diários de eletricidade derretem as camadas de gelo.
Os sobrinhos
ainda dormem, e ela tenta orar. Não consegue. A mente desconcentra-se
facilmente. Em uma prece fragmentada pede a Deus descanso e trégua. E faz a
oração sem pensar muito. Não precisa; é a mesma oração das últimas semanas.
Ela não quer
sair de casa. Não é teimosia, é falta de opção. “Para onde ir?”, pergunta, com
uma voz desesperançosa. Está tão confusa que não consegue imaginar saídas.
Nem a
piedade de enterrar os mortos o governo permite. Cadáveres estão espalhados
pelas ruas. As forças de Assad impediram de sepultar ou mesmo remover os restos
mortais. Ou seja, mesmo viva, ela não tem como fugir da morte escancarada
diante de seus olhos. Não é fácil acreditar na vida quando a realidade grita o
contrário.
Se não podem
sepultar os mortos, os sobreviventes tentam ao menos ajudar a curar as feridas
dos machucados. Não podem levá-los aos hospitais da cidade, já que há um medo
generalizado de que o governo prenda os feridos como se fossem prisioneiros de
guerra. Resta improvisar atendimento nos campos. Não bastasse a precariedade do
atendimento, não há medicamentos suficientes.
Rebeca, de
32 anos, é trabalhadora autônoma. Ou melhor, era. Agora já não sabe mais o que
é e o que faz em sua cidade Damasco, capital da Síria.

Crônica parafraseada do depoimento de uma
moradora da capital da Síria (identificada apenas pela letra “R”) ao jornal Folha de São Paulo, de quarta-feira, dia 25. A Síria está em
revolta há 16 meses contra a ditadura de Bashar Assad. Nos últimos dias, o
confronto contra os rebeldes se acirrou e as mortes aumentaram.
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